Publicado em: 22 de fevereiro de 2018
Ofensiva legislativa contra direitos humanos no Brasil é denunciada. Organização destaca que mais de 200 projetos no Congresso ameaçam direitos humanos no país; para diretora, intervenção no Rio deve ampliar violações e ajudar a promover pauta conservadora. O Brasil continuou a retroceder em políticas de direitos humanos em 2017, afirmou o relatório anual da Anistia Internacional divulgado nesta quarta-feira (21)
A entidade destacou que um dos responsáveis foi o Congresso Nacional, que permitiu o avanço da tramitação de “diversas propostas que ameaçavam os direitos humanos e retrocediam adversamente as leis e políticas existentes”.
Segundo a ONG, membros do Congresso tentaram avançar com quase “200 propostas de novas leis e modificações da legislação existente” que ferem os direitos humanos. A Anistia destacou propostas para reduzir a maioridade penal de 18 anos, iniciativas para revogar o estatuto do desarmamento e restringir ainda mais o aborto e mudar o processo de demarcação de terras.
Apontou ainda como parte do retrocesso a aprovação da reforma trabalhista e as iniciativas – até agora mal-sucedidas – de modificar as regras da Previdência, promovidas pelo governo do presidente Michel Temer.
A única iniciativa legislativa que mereceu algum elogio foi a nova lei de migração, que passou a vigorar em maio e substituiu o antigo Estatuto do Estrangeiro, criado no regime militar. Segundo a Anistia, a nova lei contém melhoras para os direitos dos migrantes.
“O Congresso se aproveitou de uma situação de crise que funcionou como uma cortina de fumaça para esconder esses ataques aos direitos humanos”, disse à DW Brasil Jurema Werneck, diretora-executiva da AI. Ela lembrou que algumas dessas propostas, como a PEC que poderia criminalizar o aborto em qualquer circunstância, acabaram sendo derrotadas após protestos, mas o Congresso ainda deve promover uma agenda conservadora em 2018.
“A intervenção federal de certa forma vai paralisar propostas de emenda constitucional – que não podem ser votadas enquanto perdurar a intervenção na segurança do Rio -, mas ainda há espaço para projetos de lei que atacam os direitos humanos”, disse.
Werneck aponta ainda que o discurso de confronto e endurecimento que vem acompanhando da intervenção no Rio de Janeiro pode ser capturado por vários membros do Congresso para promover projetos na segurança pública. “Essa visão da militarização fortalece a pauta conservadora”, disse.
Militares
A entidade também criticou a sanção por Temer, em outubro, da lei que transfere à Justiça Militar a prerrogativa de julgar militares que cometerem crimes contra civis durante operações internas das Forças Armadas. “Esta lei viola o direito a um julgamento justo, uma vez que os tribunais militares no Brasil não oferecem garantia de independência judicial”, afirma o relatório.
Com a recente intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, que colocou um general no comando das forças policiais do Estado, o papel dos militares na execução de políticas de proteção pública deve ser um tema dominante em 2018 – assim como os novos limites para investigá-los.
O documento afirma que a lei sancionada por Temer já provoca efeitos nocivos, ilustrando com o exemplo de uma operação conjunta do Exército com a Polícia Civil em São Gonçalo (RJ), em novembro. Na ocasião, sete homens morreram. “Autoridades civis afirmaram não ter competência para investigar as mortes depois que uma nova lei ampliou a competência dos tribunais militares”, diz o documento.
Segundo a imprensa brasileira, o Exército abriu uma investigação interna e vem barrando iniciativas do Ministério Público, que convocou os soldados para depor.
Para Werneck, o caso de São Gonçalo é um aviso do que está por vir com a ampliação do papel dos militares na segurança. “Não há transparência. Não há mais investigação efetiva. A experiência da presença dos militares na segurança pública, com a consequente ocupação das periferias não melhorou a situação, mas ampliou a violação dos direitos humanos”, disse.
Violência crônica
Segundo a Anistia, as autoridades brasileiras “não adotaram medidas para reduzir a taxa de homicídios, que permaneceu alta para jovens negros.” A ONG destacou que o número de homicídios aumentou nas grandes cidades, sobretudo no Nordeste, e que 61.619 pessoas foram mortas em 2016, das quais 4.657 eram mulheres.
“As políticas de segurança pública continuaram a se basear em intervenções policiais altamente militarizadas, motivadas principalmente pela chamada política de ‘guerra às drogas'”, apontou a Anistia.
Também mereceu destaque no relatório o agora esquecido Plano Nacional de Segurança apresentado pelo ex-ministro da Justiça Alexandre de Moraes em janeiro do ano passado. À época, a proposta recebeu críticas por parecer ter sido elaborada e divulgada às pressas como uma tentativa de abafar o escândalo provocado pelos massacres em presídios do Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte, que deixaram 125 mortos.
“O plano deveria se concentrar na redução dos homicídios, no enfrentamento do tráfico de drogas e numa revisão do sistema prisional. Entretanto, um plano detalhado e abrangente jamais foi apresentado ou implementado, e a situação da segurança pública se deteriorou durante o ano”, avaliou a Anistia.
Werneck disse considerar escandaloso que o mesmo governo que divulgou um plano incompleto agora anuncie a intervenção no Rio. “Estamos aguardando até hoje os detalhes desse plano apresentando no ano passado. Agora, o mesmo governo finge que ele nunca existiu e vem com essa mágica da intervenção. Nunca apresentaram soluções adequadas e agora recorrem à militarização”, concluiu.
Sistema prisional
“O sistema prisional continuou superlotado e os presos eram mantidos em condições degradantes e desumanas”, apontou a organização, que destacou que 40% dos 727 mil presos do Brasil ainda aguardam julgamento.
A ONG ainda destacou a situação das prisões do Rio de Janeiro, estado que vive uma grave crise financeira, e as consequências para os presos. “As condições prisionais desumanas foram ainda mais degradadas pela crise financeira, pondo em risco o abastecimento de comida, água e medicamentos para mais de 50.800 presos. A tuberculose e as doenças de pele atingiram proporções epidêmicas nas prisões do estado.”
O relatório ainda cita o caso de um homem que morreu após passar um dia e uma noite numa cela improvisada semelhante a uma gaiola numa delegacia em Barra do Corda, no Maranhão. O caso ocorreu em outubro. A vítima era um comerciante de 40 anos que havia sido detido por dirigir embriagado e se envolver num acidente.
“A cela não tinha qualquer proteção contra o sol ou temperaturas excessivamente altas, deixando os detidos vulneráveis à desidratação e outras consequências perigosas da exposição ao calor.”
LGBTI
Entre outras violações de direitos humanos no Brasil, a Anistia ainda apontou a violência cometida contra pessoas LGBTI. Segundo dados compilados pelo Grupo Gay da Bahia, 277 pessoas LGBTI foram assassinadas no Brasil entre 1º de janeiro e 20 de setembro. De acordo com a Anistia, é o maior número registrado desde que o grupo começou a compilar esses dados, em 1980.
Ainda no tema sobre sexualidade, a Anistia citou a autorização concedida em setembro por um juiz federal do Distrito Federal que permitiu a psicólogos aplicar “terapias de conversão” com o objetivo de modificar a orientação sexual de pacientes.
Segundo a Anistia, “a decisão ignorou uma resolução do Conselho Federal de Psicologia confirmando que psicólogos não podem exercer qualquer atividade de patologização da homossexualidade” e “contribuiu para aumentar o estigma e a violência sofridos pela população LGBTI”. Em dezembro, o mesmo juiz alterou a decisão. Ela continua a autorizar os tratamentos, mas proibiu a propaganda de terapias. O Conselho Federal de Psicologia ainda tenta derrubar a decisão.
Fonte: DW (Via Opa Mundi)