Publicado em: 8 de julho de 2018
Uma crítica recorrente que se faz às comédias brasileiras de apelo popular é que são produções que subestimam a inteligência do espectador no aspecto técnico. Não é raro se deparar com filmes (alguns até bem sucedidos nas bilheterias) que exploram de forma tão rasa a linguagem cinematográfica, sendo quase impossível diferenciá-los de programas cômicos de TV ou novelas desambiciosas no quesito visual. Mulheres Alteradas, estreia de Luis Pinheiro como diretor de um longa-metragem, aponta para um caminho estético audacioso e dinâmico. No campo do discurso, entretanto, a obra não consegue ter a mesma criatividade para escapar do lugar-comum, apesar de divertir e ter bons momentos.
Baseado obra mais conhecida da escritora e cartunista argentina Maitena, Mulheres Alteradaslogo de cara mostra que visa bater de frente com noções retrógradas sobre a forma como as mulheres já foram vistas pela sociedade e pelo cinema. Mesmo com algumas protagonistas à beira de um ataque de nervos, a intenção é de driblar a noção de que se trata de um filme sobre personagens histriônicas. A trama mostra sim mulheres em um estado de espírito à flor da pele, mas como diz o mote do longa-metragem, “mulher alterada não é louca, é uma pessoa que está mudando”.
O substantivo no título do filme poderia dar conta de uma representação mais ampla das mulheres no Brasil, mas o roteiro de Caco Galhardo escolhe um recorte de quatro protagonistas brancas de classe média. Aí, um sinal de alerta: Se a proposta do filme (e da HQ de Maitena) é lançar luz em alguns dilemas universais do universo feminino moderno, por que não usar um elenco mais plural?
De volta à trama, acompanhamos as desventuras amorosas, sexuais e existenciais de um quarteto de personagens cujos caminhos se cruzam direta ou indiretamente ao longo da narrativa. Keka (Deborah Secco) vê seu casamento com o apático Dudu (Sérgio Guizé) ir parar na UTI dos relacionamentos enquanto faz esforços unilaterais para manter a união. Marinati (Alessandra Negrini) é uma advogada dedicada (que tem Keka como uma de suas assistentes) que despreza o amor em detrimento do sexo, mas leva seus princípios às favas quando se envolve em um tórrido romance com Christian (Daniel Boaventura). Enquanto isso, as irmãs Leandra (Maria Casadevall), uma solteira na crise dos 30 anos que tem mudanças repentinas de humor e está cansada da frivolidade da vida noturna, e Sônia (Monica Iozzi), mãe de duas crianças que mal lembra o que é ter vida social, planejam trocar de papéis.
Trabalhando com arquétipos, o roteiro não consegue evitar alguns clichês, soluções fáceis e problemas inverossímeis. Independente do que acontece no (bom) desfecho, é quase impossível acreditar nos esforços da personagem de Deborah Secco para continuar casada quando a trama oferece à sua personagem um marido tão displicente, cujo potencial para irritar sua esposa é tão incômodo que nem mesmo o humor proposto para as cenas entre Keka e Dudu funciona. Marinati, personagem mais magnetizante do filme, é envolvida em uma dicotomia boba. A ela só é oferecida uma escolha: Ou se é feliz no amor ou se consegue êxito no trabalho. As duas coisas juntas são impensáveis para o roteiro. Além disso, há alguns problemas de ritmo na cena da festa onde três das quatro protagonistas se encontram e a escolha por uma narrativa em determinados momentos confunde.
Entretanto, o texto é eficaz em refletir sobre os perigos a idealização do casamento como um norte para a vida de uma mulher, escancara que a maternidade está longe de ser o que os comerciais de Dias das Mães podem dar a entender e traz cenas de sexo que enfatizam o prazer feminino sem fetichizar suas atrizes.
É possível dizer que todo o quarteto principal está muito bem em cena, mas falta coesão entre os estilos de atuação de cada atriz. Destaque total do filme, Alessandra Negrini é quem mais incorpora as caras e bocas de um longa-metragem que ganha ares surrealistas graças à sua presença. A performance é cartunesca, o que casa com a proposta pop do longa-metragem baseado numa HQ e com o ritmo ágil proposto por Luis Pinheiro. Mais canastrão do que nunca, Daniel Boaventura também tem bons momentos de humor físico e boa química em cena com Negrini. Deborah Secco se entrega ao papel e engrandece o filme, mesmo que seu arco com Sérgio Guizé seja repetitivo. Com uma performance mais contida e naturalista, Monica Iozzi faz um bom trabalho como a personagem mais séria do longa-metragem e Maria Casadevall, com menos tempo de tela, tem ao menos uma ótima sequência quando demonstra todas as emoções possíveis de se expressar quando se encontra com um ex-amor. No elenco de apoio, o maior destaque é a presença de Patrycia Travassos.
Com muitas cenas rodadas apenas com uma câmera na mão que se movimenta pelo cenário, o filme têm na direção de Pinheiro algo que faz desta obra um ponto fora da curva entre as demais comédias brasileiras de apelo popular. As tomadas são inventivas e instigantes, conferindo um bem vindo dinamismo que permeia diversos momentos da projeção. Os momentos mais urgentes são equilibrados como o plano sequência com Sônia e Leandra no qual a cidade de São Paulo se impõe como o cenário perfeito para uma história tão agitada. O diretor aproxima a linguagem cinematográfica da linguagem dos quadrinhos de forma natural e permite escapes visuais bem realizados com o auxílio de efeitos especiais. Outro destaque positivo é a fotografia que usa cores expressivas para ilustrar a efusividade das protagonistas, além do design de produção (o apartamento de Marinati é digno de Almodóvar) e da ótima trilha sonora assinada por Fábio Goés (que compôs um ótimo e escapista tema romântico e produziu uma vibrante versão para “Top Top”, dos Mutantes, interpretada por Tulipa Ruiz e MC Carol). A iluminação das cenas é outro êxito técnico do trabalho, muito bem finalizado.
Por João Vitor Figueira