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Como opera o Império


Publicado em: 11 de fevereiro de 2018


 , Entrevista com Laleh Khalili,* ViewPoint Magazine

Foto: “A batalha do arroz“, Gilles Aillaud, 1968


Viewpoint 
(VP): Como você entende o imperialismo? Ainda é conceito útil? Que parâmetros analíticos lhe parecem mais adequados para compreender as relações de força no plano internacional?

Laleh Khalili (LK): Acho que em termos muito crus, compreendo o imperialismo moderno como o desejo de tornar o mundo mais seguro para os movimentos do capital (dominado especialmente por capitalistas que têm base nos EUA e em estados aliados dos EUA), também pela força das armas, se necessário. Por mais que muito se ouça sobre o capital não ter pátria, ainda acho, sim, que há mais meios e modalidades de poder imperial que emanam do Atlântico Norte e dos EUA mais especificamente; e que países como a China ainda terão de caminhar muito para igualar. As infraestruturas legais e jurídicas necessárias aos negócios, regras de comércio e contabilidade, regulações para o comércio e os investimentos, e trilhas para a finança são praticamente todas definidas por instituições estabelecidas no Atlântico Norte. Essas instituições são protegidas por cortes de arbitragem, medidas financeiras punitivas e várias outras modalidades de controle hegemônico.

Mas sempre, como última instância, os EUA nunca vacilaram ao usar a força onde viram que seus interesses mais amplos – e os interesses do capital – estivessem ameaçados.

Acho que outro traço notável do imperialismo dos EUA é o quanto não se interessa em defender territórios que ocupe temporariamente, exceto nos casos em que precise de bases fixas para projetar o poder militar e para se pré-posicionar, em termos logísticos, nos casos de desafios contra a dominação pelos EUA que exijam resposta rápida. De fato, durante muito tempo, especialmente desde a retirada do Iraque em 2009, os EUA preferem que suas tropas permaneçam invisíveis. Para essa finalidade, os EUA constroem bases em locais inalcançáveis, como a ilha Diego Garcia no Oceano Índico – comprada numa negociação suspeitíssima com os britânicos nos anos 1970s e depois de a Grã-Bretanha ter evacuado todos os habitantes da ilha. Os EUA também se beneficiam de ofertas de regimes amigos na Europa, Ásia, África e América Latina, para alocar suas forças em bases de aliados. São sempre cercadas de imensos aparatos de segurança e sigilo, fornecidos por regimes clientes amigos e servis, sempre regiamente recompensados.

VP: Como evitar a noção simplória de imperialismo como “a política exterior” de alguns específicos estados-nação?

LK: É importante reconhecer que o imperialismo é um dispositivo que inclui estruturas de extração e exploração econômica; formas assimétricas de acumulação de capital; modalidades de controle militar; e aparatos legais e de administração completos que garantes a subjugação e a exploração de alguns, no planeta, por outros. O imperialismo também vem acompanhado de discursos sempre mutáveis que servem como álibi e cobertura para aqueles processos mais amplos: antes foi o discurso do racismo dito científico; hoje são os discursos do caos, da falta de democracia, ou coisas assim supostas necessárias ao desenvolvimento, ao progresso, à felicidade.

VP: De que modo seu trabalho com logística influenciou sua concepção de imperialismo? Assistimos a mudanças significativas tanto na estrutura técnica da guerra e na mobilidade de materiais e armas militares através de fronteiras nacionais, para nem falar da relação cheia de riscos entre a acumulação contemporânea do capital, reações contra a globalização vindas da esquerda e da direita, e os efeitos correspondentes sobre a composição das classes e lutas pelo trabalho.

LK: Meu trabalho tornou-me intensamente consciente de como a coerção e as esferas da economia política não são as únicas esferas nas quais o império opera. O que é fascinante é a incorporação, à esfera do capital, de todos os cantos e mais remotos pontos do mundo. Muito frequentemente, essa incorporação acontece seja mediante as guerras promovidas pelos EUA e aliados, mas cada vez mais, desde o fim do regime de Bretton Woods, usam-se instrumentos de comércio e finança para atar, cada vez mais firmemente, aos regimes capitalistas de produção e controle, os pontos remotos do mundo.

Mas tão importante quanto isso, é que agora o capital viaja não só a partir de Londres ou New York ou do Atlântico Norte, mas também de Singapore e Dubai e Hong Kong e Xangai.

O que continua a ser imperial – e vê-se claramente, repetidas vezes – é que as regras do jogo ainda são definidas em Washington, D.C. e no Atlântico Norte. Falo de fatores sobre os quais sempre se pensa – tratados multi e bilaterais, acordos legais internacionais, regras de comércio e negócios –, mas também de coisas sobre as quais pouco se pensa: padrões de cobrança e prestação de contas; processos corporativos de arbitragem; o cálculo de prêmios de seguro que se compra e vende; a definição e atribuição de copyrights; e coisas assim.

Além de tudo isso, claro, a força das armas e da finança continua a ser crucial. A eleição de Trump marque ou não o início do declínio dos EUA (coisa em que absolutamente não acredito), os EUA continuam a ser a maior força militar do planeta, e ainda deseja projetar a própria força. As trilhas pelas quais viajam os ganhos de capital, os circuitos do capital e da finança, ainda apontam principalmente para a região do Atlântico Norte, por mais que se veja cada vez mais viajarem por esse circuitos também capitais que têm base na Ásia e na África.

VP: Como podemos traçar a longa construção de um aparelho legal internacional, que legaliza o livre fluxo de mercadorias através desses espaços marítimos e do comércio?

LK: Nesse caso aqui estamos lidando menos com o imperialismo per se e, mais, com o legado do colonialismo. Como nos mostram historiadores do Oceano Índico, antes da chegada dos portugueses nenhum governante da região havia tentado afirmar a própria soberania sobre os mares. Os portugueses inauguraram essa prática, exigindo que navios mercantes exibissem licenças para navegar águas profundas. Os britânicos aperfeiçoaram o conceito de “rotas marítimas” como espaços para afirmar o controle que queriam manter sobre o comércio asiático e na concorrência com outras potências europeias. Num dado sentido, o imperialismo nos espaços marítimos foi menos velado quando tinha a ver com demarcar a posse estratégica de vários impérios em locais como Áden, ou Ormuz, ou Diego Garcia, ou o Chifre da África.

Mas talvez a parte mais importante da resposta seja apontar que a própria ideia de legislação internacional surge da tentativa dos holandeses para controlar espaços marítimos no Oceano Índico, no momento em que o capitalismo está emergindo, com força total, como conjunto de relações sociais e políticas no canto noroeste da Europa.

A tese central de Hugo Grotius em seu Mare Liberum, redigido como resposta a escaramuças entre europeus no Oceano Índico, é que o mar tem de ser espaço “livre” para o comércio. Mas é claro que essa terminologia significa que as potências imperiais europeias têm de acertar algum tipo de equilíbrio de poder segundo o qual os espaços marítimos possa ser usados livremente pelas mesmas potências europeias, de modo que possam livremente extrair os recursos da Ásia e acumular capital por trás da exploração dos povos e recursos do Oceano Índico.

VP: Ao estudar os antecedentes coloniais do livre comércio, como você vê essa sobrevida do encontro colonial na logística contemporânea e o livre comércio como vias para reformatar a compreensão que temos do colonialismo, tão criticado pelos defensores da globalização e do livre mercado como empreitada frequentemente sem lucros? Sua pesquisa histórica parece sugerir que o colonialismo foi etapa custosa e economicamente desvantajosa da constituição de relações sociais capitalistas em escala mundial.

LK:  Que foi custosa, foi. Mas não tenho muita certeza sobre se foi economicamente (ou de qualquer outro modo) desvantajosa. É importante reconhecer que a análise pelo cálculo custo-benefício jamais foi o único fato (sequer foi um fator) no processo da colonização. Colonização teve muito mais a ver com encontrar novos locais onde investir o capital excedente, buscar novos recursos naturais para substituir reservas domésticas inexistentes ou já esgotadas, encontrar novos mercados etc. Mas a colonização também teve a ver com dominação estratégica e supremacia política que gerava prestígio e poder em casa e no exterior, erguido sobre os ossos e as ruínas de vidas, sociedades e economias colonizadas.

VP: Você fez pesquisas recentes sobre gerentes europeus e norte-americanos na finança, seguros globais, gestão de recursos, aconselhamento legal para comércio marítimo. Na sua visão, essa “coorte cosmopolita” é indispensável para assegurar as próprias condições de possibilidade para o movimento relativamente sem atrito do capital pelas diferentes partes do mundo. Esse grupo, cujo pessoal movimenta-se entre o norte e o sul globais, os espaços intersticiais que eles ocupam entre geografias distantes, o Estado e o mercado, constitui fração, algum estrato identificável daclasse dominante? Mais diretamente, este estrato dos gerentes e administradores constitui uma modalidade antagonista partilhada entre todos esses entes, contra as lutas sociais em diferentes partes do mundo?

LK:  Prefiro não generalizar tanto sobre esse grupo intermediário de gerentes in toto, em parte porque cada vez mais o grupo também inclui especialistas técnicos e de finanças do Sul Global (especialmente indianos). Em muitos casos, os especialistas europeus fazem lembrar os funcionários coloniais civis, que encontram no serviço colonial uma forma de mobilidade social. Certamente, muitos dos administradores e gerentes de portos e equivalentes que encontrei no Golfo vinham das classes trabalhadoras no Reino Unido. Os especialistas em finanças em geral e em seguros, por outro lado – especialmente os que já chegaram aos pontos mais altos da carreira – constituem, sem dúvida, uma classe gerencial reconhecível e mais ou menos coerente; e sejam ou não conscientes do papel ideológico e funcional que lhes cabe nos movimentos globais e na acumulação de capital, com certeza agem como engrenagens efetivas nessa imensa máquina.

VP: Um dos importantes achados de sua pesquisa sobre o complexo paraestatal é que houve expansão massiva dos modos, espaços e agentes do imperialismo e das relações transnacionais de poder contemporâneos. No rastro do governo Obama, qual é o status do complexo paraestatal?

LK: Um complexo paraestatal refere-se, primeiramente, a um corpo inter-relacionado de empresas e agências do governo cujos mandatos e limites tornam-se difusos ou misturam-se. Um artigo soberbo de Tim Mitchell de 1991, “The Limits of the State,” [Os limites do Estado], cita a ARAMCO (Saudi Arabian Oil Compan, Empresa Saudita de Petróleo) como a instituição paraestatal por excelência. Para Mitchell, a propriedade da ARAMCO é difusa, quase não identificável, porque é propriedade simultaneamente de governos e de investidores privados; a empresa projeta políticas exteriores e influenciou a política interna na Arábia Saudita e também nos EUA, e a companhia é dispersa geograficamente e operacionalmente.

No mundo dos serviços de segurança, o relacionamento que há entre empresas como Palantir ou Blackwater com agências do Estado cria uma espécie de complexo paraestatal. Nessas firmas, os empregados são quase sempre ex-funcionários do Estado, militares, de inteligência ou de segurança. São empresas que fornecem serviços auxiliares ou por procuração às agências do governo dos EUA. Onde acaba o trabalho de um lado, quase sempre é difícil ver com clareza onde começa o trabalho do outro.

Esse vasto complexo inter-relacionado de instituições privadas e instituições públicas co-imbricadas umas nas outras e que operam em serviços de segurança, de logística e no serviço global de carceragem está em operação, na verdade, há muito tempo. Eu diria que de fato o que mudou ao longo do tempo tem sido a distribuição das áreas delimitadas para cada um e o processo de classificar as coisas como públicas ou privadas, soberanas ou não.

Por exemplo, vê-se a empresa G4S de segurança envolvida em atividades de política de fronteira na Europa, em contratos de serviços para prisões em Israel, e outros tipos de serviço de segurança pelo mundo. Blackwater, que fornece serviços de mercenários já passou por várias transformações e mudanças de nome e emergiu como prestadora de um serviço de “força de proteção” [ing. “force protection”] que fornece serviços de segurança a agências governamentais. O antigo proprietário e presidente executivo da Blackwater vive hoje em Abu Dhabi e fornece serviços de segurança logística ao Estado chinês e a investidores privados na África Oriental.

Empresas privadas em todo o mundo, empresas com nomes que todos conhecemos como DHL, fornecem serviços de logística aos militares dos EUA e provavelmente também a militares de outros países. Os serviços de prisões e vários departamentos de polícia dos EUA têm relacionamento extenso com seus contrapartes em todo o mundo. O treinamento para contraterrorismo é hoje um fenômeno globalizado, e ambas, forças militares e forças policiais, em muitos casos, colaboram em operações de contraterrorismo e partilham inteligência praticamente sem ver fronteiras.

Esses complexos, essas instituições, frequentemente se tornam normalizadas, institucionalizadas e consolidadas mediante o trabalho diário das empresas e das burocracias envolvidas. As políticas podem até variar nos escalões superiores, mas, como vimos, as instituições – especialmente as envolvidas em segurança – continuam a operar sem ver fronteiras sem muitas diferenças ao longo do tempo. Assim, em certo sentido, não vejo que o período pós-Obama venha a ser momento especial de ruptura. Não, de qualquer modo, até agora.

VP: Há excelente discussão em Viewpoint e outros periódicos entre Jasper Bernes e Alberto Toscano sobre logística, o valor de troca [ing. value-form], relações sociais capitalistas e o Estado.[1] Sugere-se lá que conflitos em torno desses entroncamentos logísticos – porto de contêineres, ou os nodos na cadeia de distribuição de Walmart – ou são assaltos contra o poder capitalista ou são desafios diretos ao valor em movimento. Considerado o seu trabalho sobre a constituição e o desenvolvimento de infraestrutura marítima no Golfo Persa, qual dessas duas explicações lhe parece mais convincente? É possível que esses entroncamentos, como elementos centrais da arquitetura logística, atuar como possíveis alavancas para reconstituir a solidariedade e a coordenação internacionais? É possível que lutas separadas dentro e contra essa infraestrutura indique modos pelos quais se possa articular pontos estratégicos comuns de referência num nível global?

LK: Gostei muitíssimo da discussão Toscano-Bernes e pensar com eles foi muito produtivo. O fantástico trabalho de Deborah Cowen em Deadly Life of Logistics  também mostrou o quanto a logística tem a ver simultaneamente com conter ações consideradas adversas e com distribuir bens; e que meios de penetrar aquelas estratégias de contenção – pela mobilização dos trabalhadores, por exemplo – são cruciais para que se compreendam com mais clareza as formas de divergência, oposição e de luta que estão emergindo no século 21.

Isso posto, no Golfo, especialmente, já é bem claro que a possibilidade de algum tipo de mobilização que efetivamente desafie o valor-em-movimento ainda depende das estruturas antigas, existentes, para mobilizar trabalhadores; e que, na ausência de sindicatos e de melhores leis para o trabalho, a capacidade básica desses trabalhadores para resistir contra a deportação depois de um protesto está muito gravemente enfraquecida. A coordenação global pode prover vias para solidariedades globais (por exemplo, estivadores de Oakland que se recusam a descarregar cargueiros israelenses, ou estivadores da África do Sul que fazem greve em apoio às lutas dos estivadores europeus).

Ao mesmo tempo, inovações constantes nas tecnologias da governança da economia não ajudam só no processo de acumulação do capital; também ajudam a encontrar formas de mobilização: portos distantes de cidades; automação tanto em terra como embarcada; bandeiras de conveniência; contratos bifurcados de trabalho embarcado, com disparidade massiva entre salários e regime de folga para tripulação e oficiais; e assim por diante. É um processo mutuamente constitutivo: novas formas de trabalho trazem novas formas de repressão que trazem novas formas de mobilização dos trabalhadores que trazem novas formas de trabalho.*****

* Professora de Política do Oriente Médio na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres [ing. SOAS]. É autora deHeroes and Martyrs of Palestine: The Politics of National Commemoration (Cambridge 2007) e de Time in the Shadows: Confinement in Counterinsurgencies (Stanford 2013); editora de Modern Arab Politics (Routledge 2008) e co-editora (com Jillian Schwedler) de Policing and Prisons in the Middle East: Formations of Coercion (Hurst/Oxford 2010).

[1] Ver Alberto Toscano, “Logistics and Opposition,” Mute, 9/8/2011; Jasper Bernes, “Logistics, Counterlogistics, and the Communist Prospect,”Endnotes 3 (2013); Alberto Toscano, “Lineaments of the Logistical State,” Viewpoint Magazine 4 (2014); Joshua Clover e Jasper Bernes, “The Ends of the State,” Viewpoint Magazine 4 (2014). Ver também Deborah Cowen, “Disrupting Distribution: Subversion, the Social Factory, and the ‘State’ of Supply Chains,” Viewpoint Magazine 4 (2014).