Publicado em: 26 de março de 2018
por Luis Felipe Miguel/JornalGGN
A Folha de S. Paulo traz, em seu caderno de variedades, reportagem encimada pelo título: “Dilma diz que José Padilha distorceu fatos em série”. Dentro, o texto aponta – timidamente, mas aponta – algumas das manipulações presentes no seriado (a atribuição de frase emblemática de Jucá a Lula, a cronologia do caso Banestado). O título, no entanto, faz parecer que é só bate-boca, reclamação de político contra críticas. Na verdade, Dilma não “diz que”. Dilma aponta que Padilha distorceu.
A reportagem ouve Padilha, que responde da esperada maneira canalha. Depois de afirmar – que ingênuo – que “estancar a sangria” é uma expressão que não tem dono, podendo ser colocada na boca de qualquer um, ataca, com a agressividade dos que têm a consciência culpada: “Na abertura de cada capítulo está escrito que os fatos estão dramatizados, se a Dilma soubesse ler, não estaríamos com esse problema”. A mesma observação, sem a grosseria contra a presidente legítima, abre a elogiosa resenha do “crítico” Cássio Sterling Carlos, que a fecha louvando a “audácia” de Padilha. “Audácia” de servir aos donos do poder? Curioso uso da palavra.
Há duas questões imbricadas, aqui. Uma é o seriado. Não resta dúvida que Padilha e Netflix buscam reforçar a narrativa maniqueísta da Lava Jato e a criminalização do PT e da esquerda. Com estreia logo antes do início da corrida eleitoral, no momento em que se esperava a prisão arbitrária de Lula, fala para a classe média que começa a balançar em seu apoio ao golpe e também para o público internacional, já que a narrativa do “impeachment” tem cada vez menos força no exterior. Colocar a frase de Jucá na boca de Lula é especialmente grave. “Grande acordo nacional” e “estancar a sangria” têm funcionado como gatilhos para lembrar que o golpe não foi dado para moralizar o Brasil. Para os espectadores de Padilha, o gatilho funcionará com sentido oposto.
Não se trata de “liberdade de expressão” e de “ficcionalização de fatos”. A amplitude para elas (liberdade, ficcionalização) é grande e inclui seus efeitos políticos. Quando o filme de Jonathan Teplitzky mostrou Churchill se inspirando no povo comum no metrô de Londres, com destaque para seu diálogo com um homem negro, sua “licença poética” cumpriu o papel de mascarar o elitismo e o racismo do então primeiro-ministro, bem como de transmitir uma mensagem adulterada do sentido da Segunda Guerra para o governo britânico. É um efeito político. Mas Padilha ultrapassa outras fronteiras. Ele chega à difamação, que é crime tipificado no código penal. Ele distorce a história recente – fatos acima da possibilidade de contestação, como quem falou a frase de Jucá, quando começou o caso Banestado, quem era o advogado de Alberto Yousseff – com a intenção deliberada de manipular um processo político em curso. Ele coonesta o discurso de ódio contra o ex-presidente Lula e se torna cúmplice das agressões cada vez mais violentas que ocorrem contra ele.
A outra questão é a reportagem da Folha. Numa boa coluna, ontem, a ombudsman Paula Cesarino Costa indicou o papel do jornal na difusão das mentiras sobre Marielle Franco. A Folha foi quem repercutiu a postagem da desembargadora. E a matéria da Folha serviu de fonte “fidedigna” para que o site Ceticismo Político, do MBL, iniciasse sua campanha difamatória. A reportagem até indicava o contraditório num de seus parágrafos, mas seu título era: “Magistrada diz que Marielle tinha elo com bandidos”. Como Costa bem lembra, o próprio Manual de redação, cuja nova edição a mesmíssima Folha lançou com festejos recentemente, lembra que “títulos e subtítulos constituem o principal, quando não o único, ponto de contato de muitos leitores com a notícia”. Ao apresentar no título a informação mentirosa, sem contestação e atribuindo-a a uma figura de autoridade (“magistrada”), a Folha deu curso à mentira.
Em texto clássico sobre o processo de produção da notícia, Gaye Tuchman fala das estratégias de “evasão de responsabilidade”. Uma das principais é privilegiar as declarações de fontes; em vez de reportar o mundo, o jornalismo reporta o que alguém fala sobre o mundo. No caso da desembargadora, a Folha se eximiu de apontar que ela mentia. No caso de Dilma, de apontar que ela dizia a verdade. A opção é diferente nos dois casos, mas serve aos mesmos propósitos.
O jornalismo corporativo, Folha à frente, usa o fantasma das “fake news” para se legitimar. A Folha mesma abusa do recurso a agências de “fact checking” para avaliar a veracidade de declarações de políticos. Na hora de desonrar a memória de Marielle Franco ou açular o antipetismo hidrófobo, no entanto, nenhum fato precisa ser checado.